Story

A Interminável Emergência da Zika

Mylene Helena dos Santos Ferreira e seu filho Davi aguardando para falar com o médico no hospital. Fotografia por Fábio Erdos. Brazil, 2017.

Mylene Helena dos Santos Ferreira e seu filho Davi aguardando para falar com o médico no hospital. Fotografia por Fábio Erdos. Brazil, 2017.

Escrito por Poonam Daryani. Fotografia por Fábio Erdos. Traduzido por Rafael Alkalai. Interpretação foi realizada por Rafael Alkalai, Tiago Cabral, Adriana Bentes dos Santos, e Margarida Corrêa Neto. (This story was originally published in the Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health Magazine. To read in English click here.)

Dhulha Alen Silva do Nascimento, 25, se cala a meia frase, sua atenção direcionada à sua filha de dois anos, cujo pequeno corpo se enrigecesse nos seus braços.

Nascida em novembro de 2015 com a sindrome congênita da Zika, Valentina tem convulsões regularmente, muitas vezes várias por dia. Com destreza e sem sinal de alarde, Nascimento acolhe sua filha, pedindo que seus músculos relaxem e esperando os espasmos passarem.

Nascimento brinca que ela virou enfermeira depois que Valetina nasceu. Seu incrível conhecimento das complexidades clínicas da SCZ e habilidade em realizar os exercícios de fisioterapia com a sua filha, atestam ao seu conhecimento adquirido.

Às vezes, entretanto, a jovem mãe não consegue evitar de pensar na sua vida antes de Valentina ter nascido.

“Eu costumava sair toda noite”, Nascimento recorda.

Com seu batom vermelho pulsante e risada contagiante, é fácil imaginá-la durante essa época. “Eu adorava sair com meus amigos, me arrumar, ir dançar, me divertir na cidade,” ela diz. “Agora, eu odeio cada dia que eu tenha que sair de casa” diz Nascimento, referindo-se às dificuldades de navegar o transporte público com Valentina.

Mylene Helena dos Santos Ferreira, 23, cujo filho Davi nasceu em agosto de 2015 com SCZ, compartilha os mesmos sentimentos que Nascimento. Ela agora tem dores crônicas nas costas e braços, algo que ela acredita estar relacionada a ter que ficar segurando Davi, que ainda não tem condições motoras para sentar-se ereto. Antes que um padrinho benfeitor ajudara a comprar uma cadeira de rodas especializada, ela tinha que constantemente carregá-lo pra todos os lugares.

No que diz respeito a maior parte do mundo, a crise da Zika, primeiro identificada no Brasil em 2015, terminou. O governo brasileiro declarou um fim à emergência em Maio de 2017, cinco meses depois da OMS. A Zika foi mais uma epidemia que atraiu atenção internacional, instigou um pânico temporário e saiu de foco.

Nem tanto para Nascimento e Ferreira, ou para as cuidadoras das 14.558 crianças somente no Brasil que tem a SCZ,  dados de setembro de 2017.

No presente momento, elas fazem parte de uma comunidade majoritariamente de mulheres que tem a jornada diária e exclusiva de cuidar de uma criança com dificuldades complicadas e um futuro incerto. Muitas precisarão de um cuidado caro e especializado para o resto de suas vidas

A PERDA DO EU

O rótulo de “cuidadora” em si, diminui  as múltiplas identidades das mulheres que estão cuidando das crianças com SCZ.

Nascimento era gerente de um restaurante cursando a faculdade de Administração quando Valentina nasceu. Ela planejava contratar uma babá e voltar a trabalhar e estudar; até agora, nenhum dos dois foi possível.

Ferreira, um vez atendente de Telemarketing durante o dia e boleira artesanal pela noite, tinha ambições de um dia ir estudar gastronomia. Ela continuou trabalhando por quatro meses depois que Davi nasceu mas lhe pediram que se retirara do serviço devido a um excesso de faltas.

Ela também recebeu uma bolsa para estudar um diploma online em nutrição, um caminho motivado pelas dificuldades de deglutição de Davi. Entretanto, sem alguém para cuidar dele, ela não tinha como sair de casa para realizar as provas presenciais obrigatórias.

Mãe e filha: Dhulha Alen Silva do Nascimento e sua filha, Valentina compartilham um momento de silêncio em casa. Fotografia por Fábio Erdos Brazil, 2017.

Mãe e filha: Dhulha Alen Silva do Nascimento e sua filha, Valentina compartilham um momento de silêncio em casa. Fotografia por Fábio Erdos. Brazil, 2017.

Muitas mães, algumas que antes tinham um certo nível de autonomia financeira, agora se veem obrigadas a receber apoio governamental ou a se asseguram através dos salários dos seus maridos -  isto é se ele está empregado e não abandonou a família.

Ferreira largou seu marido de oito anos quando Davi tinha quatro meses. Ela se assegura principalmente em um benefício federal para deficientes, Beneficio de Prestação Continuada (BPC), de R$ 937 mensais.

O marido de Nascimento, foi demitido e agora ganha R$ 1.000 por mês em lavagens de carro e bicos de construção, desqualificando a família dela de receber o BPC.

Excluindo os gastos com outros filhos, aluguel, e necessidades domésticas, mensalmente as despesas relacionadas a SCZ variam entre R$ 1.100 e R$ 1.400.

Porque a epidemia da zika atingiu fortemente áreas marcadas pela pobreza, saneamento básico precário, e desigualdade estrutural, muitas das famílias com crianças afetadas pela SCZ já viviam em condições socioeconomicas precárias.

Mesmo com os benefícios governamentais para deficientes e outros serviços, muitas mães que cuidam de crianças com SCZ têm dificuldades finaceiras. Elas acreditam, assim como varias organizações para direitos humanos tanto locais quanto internacionais, que a resposta do governo tem sido inadequada.

Medicamentos caros e vitais, assim como comidas e equipamentos médicos especializados que não são cobertos pelo governo constituem a maior parte das despesas relacionadas à SCZ. E isso representa somente os custos diretamente relacionados; uma avaliação do PNUD de 2017 descobriu que os custos indiretos da microcefalia, incluindo perda de renda, são seis vezes o valor do benefício governamental. O mesmo relatório do PNUD concluiu que a maioria dos custos serão abarcados por populações que já são marginalizadas: mulheres solteiras de baixa-renda e negras

Nascimento sobrevive com a ajuda finaceira da família do seu marido, enquanto Ferreira recebe apoio de um padrinho Estadunidense que leu sobre ela e Davi no jornal e agora age como patrocinador de Davi. Nenhuma das duas consegue pagar o aluguel e ambas estão aguardando a aprovação de moradia popular fornceida pelo governo.

Economistas estimam que a Zika é resposável por uma perda de US$7-18 bilhões no PIB somente entre 2015 e 2017. Para além destes números, cuidadoras sentem um senso mais profundo de perda pessoal.

Para Ferreira e Nascimento ambas moradoras de Jaboatão dos Guararapes, um município fronteiriço ao sul de Recife, o intenso trabalho de cuidar de uma criança com SCZ forçou-as a deixar de lado outras ambições e relacionamentos.

Juliana César, gestora de projeto na Gestos, uma ONG pernambucana focada em saúde e direitos humanos, concorda que a situação é profundamente problemática.

“Se essas crianças morrerem, que algumas estão, o que é que essas mulheres irão fazer? Elas estão tão investidas nas suas crianças que já não têm uma vida própria separada” diz César. “Até agora, nenhuma das medidas fornecidas pelo governo são especificamente direcionadas a apoiar as mães ou assegurar seus direitos. Tudo, do transporte grátis ao salário mínimo, tem focado no vetor mosquito ou no bebê, nunca na mãe.

Nascimento e seu marido Luiz, atravessam um riacho aberto com sua filha, Valentina, voltando da casa dos avós de Dhulha. Fotografia por Fábio Erdos. Brazil, 2017.

Nascimento e seu marido Luiz, atravessam um riacho aberto com sua filha, Valentina, voltando da casa dos avós de Dhulha. Fotografia por Fábio Erdos. Brazil, 2017.

MECANISMOS DE RESILIÊNCIA

Insatisfação com a resposta do governo brasileiro no desenrolar da epidemia precipitou um aumento em ação social e grupos de apoio para mães, incluindo a União de Mães de Anjos (UMA), uma rede de mais de 400 mães de crianças com a SCZ.

Ao contrário do retrato da mídia da SCZ e microcefalia como deficiências trágicas, essas mães não lamentam a condição de seus filhos, muitas consideram o cuidado destas crianças como uma benção. Elas têm se mobilizado contra as desigualdades socioeconomicas que impulsionaram a epidemia, e a pioraram no seu despertar. Elas estão cobrando uma resposta do governo que assegure a proteção dos seus direitos, incluido condições meio-abientais, serviços de saúde e proteção socioeconomica para poderem viver e cuidar das crianças com dignidade e auto-determinação.

Muitos grupos como a UMA tem ganhado impulso e massa crítica em plataformas virtuais, como WhatsApp, onde as mães fornecem apoio mútuo assim como novas informações sobre os cuidados de uma criança com SCZ. Alguns destes grupos têm saído da esfera online e organizado protestos de rua, negociando acesso a medicações, e realizando lobby para oficiais do governo mudarem políticas públicas e engajado a mídia de maneira estratégica.

Essas mães “são as especialistas, as cientisas domésticas que têm avançado o nosso entendimento da SCZ,” diz Débora Diniz, uma antropóloga feminista brasileira e autora do livro “Zika: Do sertão nordestino à ameaça global”. “Elas foram as primeiras a detectarem as convulsões em crianças. Jalecos brancos e grupos biomédicos precisam da cuidadora para saber o que está acontecendo.”

Nascimento está no processo de lançar a sua própria ONG, Amo Um Ser Especial (AUSE), para mais de 65 famílias de crianças com microcefalia no seu município.

“Nós queremos arrecadar dinheiro para itens básicos de subsistência como leite e fraldas, mas o que nós realmente precisamos a longo prazo, é uma creche especializada com uma equipe multi-profissional para que possamos voltar às nossas vidas,” ela explica. “Uma vez que a creche esteja aberta, eu quero voltar para a Universidade e terminar minha faculdade de administração, e depois fazer um curso na área relacionada às necessidades da Valentina.”

Dra. Pompéia Villachan-Lyra, pesquisadora em educação e professora na Universidade Federal de Pernambuco, acredita que é responsabilidade do governo fazer das escolas públicas um espaço inclusivo e acessível para crianças com SCZ, o que ela diz ser um direito constitucional. Entretanto, no meio tempo, Villachan-Lyra apoia as creches e não somente para o benefício das crianças.

“Nós sabemos que a situação emocional das famílias impactará os resultados da criança,” ela explica. “Um espaço especializado é bom para o bebê pois irá promover o seu desenvolvimento, mas também será bom para as mães: elas precisam de um tempo para si.”

Nascimento alistou o apoio de um político local para a construção de um espaço separado na clínica de saúde da comunidade para o cuidado e reabilitação de crianças com a SCZ, um movimento que diminuiu as viagens quase diárias que ela realizava para a capital, Recife, onde historicamente os cuidados médicos especializados têm se concentrado.

Ricardo Ferreira Jr, um médico, estressa como o cuidado localizado faz a diferença. “Essas crianças vão ter necessidades médicas contínuas para o resto de suas vidas, e os grandes centros não conseguirão cobrir esta demanda para sempre,” ele diz. “As necessidades destas famílias devem ser atendidas em suas próprias comunidades, onde eles moram, por médicos que conheçam a eles e suas histórias.”

Oficias do governo de Pernambuco sentem que muitas das críticas levantadas contra a resposta deles são desmerecidas. Eles mantém que estão fazendo o melhor possível para apoiar estas famílias e estão abrindo centros adicionais em todo o estado para aumentar o acesso a cuidados especializados, mas a expansão e crescimento destes serviços têm sido devagar.

Enquanto por ora, novos casos de Zika têm diminuido, famílias de crianças com a SCZ continuarão vivendo à sombra da epidemia durante décadas por vir.

Com uma condição tão inexplorada como a SCZ, e sem proteções sociais que permitem o sucesso, pouco parece seguro para estas famílias. Afinal, Diniz pergunta “Qual é o significado de uma emergência e quais são as condições para o seu cumprimento?”

Para Nascimento e Ferreira, e milhares como elas, a emergência parece estar longe do seu fim.

Poonam Daryani, MSP ’17, é a Fellow de 2017 da Johns Hopkins-Pulitzer Center Global Health Reporting. Ela é a Clinical Fellow com a Yale Global Health Justice Partnership, um programa conjunto da Yale Law School e a Yale School of Public Health.